Você conhece alguém com padrão de dependência de jogos online e tecnologia?
Nessa entrevista, concedida à TV Senado, o psicólogo Fábio Caló fala sobre vício em games e tecnologia após a publicação da revisão da CID (Classificação Internacional de Doença) pela OMS – Organização Mundial da Saúde, que incluiu o uso abusivo de jogos eletrônicos como doença.
Nos últimos anos, a relação entre seres humanos e tecnologia sofreu uma transformação profunda. O que antes era apenas lazer ou ferramenta de trabalho, para muitos, tornou-se uma prisão comportamental. Em 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS), na 11.ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID), oficializou o que muitos profissionais de saúde mental já observavam nos consultórios: o vício em videogames é considerado uma patologia.
No entanto, compreender essa condição exige ir além do rótulo de “doença”. É preciso entender a neuroquímica envolvida, o impacto social e, principalmente, diferenciar o entusiasta do dependente. Este artigo explora a realidade, as consequências e os tratamentos para a dependência tecnológica, com base em insights do Instituto de Psicologia Aplicada.
A Linha Tênue: Diferença entre o “Gamer” e o Viciado
Uma das primeiras dúvidas que surgem quando se discute este tema é: jogar muito faz de alguém um viciado? A resposta reside na funcionalidade da vida do indivíduo, e não apenas no número de horas jogadas.
Existem comportamentos que são mapeados de forma numérica, mas a avaliação qualitativa é essencial. O “gamer” é aquele indivíduo que se dedica aos jogos, passa bastante tempo do seu dia nessa atividade e pode até ter isso como profissão. Contudo, ele joga sem que isso comprometa as áreas vitais de seu funcionamento, como a vida social, conjugal e profissional.
Por outro lado, o quadro patológico se instala quando há uma perda de controle. O indivíduo mergulha em um padrão de comportamento onde passa mais horas do que deveria ou poderia, resultando em prejuízos diretos na qualidade de vida e nas relações interpessoais. A Organização Mundial da Saúde baseia sua classificação nestas estatísticas de perda de funcionalidade e descontrole.
O Cenário Tecnológico Ampliado
Embora a classificação da OMS tenha focado especificamente nos jogos (“Gaming Disorder”), especialistas apontam que estamos lidando com um fenômeno muito mais amplo de dependência tecnológica. As demandas em consultórios psicológicos têm crescido consideravelmente, abrangendo não apenas jogos, mas o uso indiscriminado de smartphones, tablets, computadores e mídias sociais.
É provável que futuras revisões das classificações de doenças passem a abranger essas outras áreas. Já se investiga, por exemplo, a dependência em pornografia online, onde o consumo excessivo traz prejuízos que vão além da esfera sexual, gerando desatenção, ansiedade e depressão em outras áreas da vida. A expectativa é que a próxima revisão da CID inclua outros padrões de dependência relacionados à tecnologia.
Quem são os Mais Afetados?
Embora a tecnologia afete a todos de forma indiscriminada, existem perfis demográficos mais suscetíveis a certos tipos de vício. No que tange aos jogos eletrônicos, observa-se uma prevalência maior entre adolescentes e adultos jovens, predominantemente do gênero masculino. Já as meninas e mulheres tendem a apresentar uma dependência maior voltada para as mídias sociais.
Contudo, o isolamento social causado pela tela é universal. É comum observar vizinhos de elevador que não trocam uma palavra, mantendo os olhos fixos na tela luminosa, incapazes de notar detalhes simples das pessoas ao redor, como a cor do cabelo. Essa conexão profunda com o virtual gera uma desconexão imediata com o real.
H2: A Neurociência do Vício: Dopamina e Hiperestimulação
Para entender por que é tão difícil largar o controle ou o celular, precisamos olhar para o cérebro. A indústria de jogos evoluiu drasticamente desde a época do Atari. Hoje, temos resoluções gráficas que se assemelham a filmes, sonorização de alta definição e uma resposta imediata a qualquer comando.
Isso gera um nível de estimulação cerebral imenso. A chave para esse processo é a dopamina, um neurotransmissor liberado diante de estimulações que trazem prazer ou mobilizam nossa atenção. Seja saboreando um chocolate ou vencendo uma fase difícil em um jogo, há uma “explosão” de dopamina no cérebro.
O problema reside na intensidade. Jogos de estratégia ou de guerra exigem velocidade e atenção extremas, treinando o cérebro para operar em um nível de estímulo muito alto. Quando comparamos isso com o uso de substâncias, o mecanismo é assustadoramente similar: a dopamina é o mesmo neurotransmissor envolvido no vício em heroína e cocaína, proporcionando euforia e diminuindo sensações de angústia ou desconforto.
O Efeito na “Vida Real” e o Falso TDAH
Quando um cérebro acostumado a essa hiperestimulação é exposto a uma sala de aula comum ou a uma conversa cotidiana, o ambiente “normal” perde o valor e o sentido. A vida real parece lenta e sem graça.
Isso tem levado a um fenômeno preocupante: muitos adolescentes estão sendo diagnosticados erroneamente com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Esses jovens apresentam desatenção na escola não por uma condição neurobiológica inata, mas porque seus cérebros estão habituados a um nível de estímulo que a aula expositiva não consegue oferecer.
A prova disso é que, diferentemente do TDAH clínico, essa alteração é muitas vezes temporária. Se o jovem abre mão da rotina excessiva de jogos, ele tende a recuperar seu padrão de atenção e a capacidade de interagir socialmente.
Impactos na Vida Adulta e Profissional
O vício não desaparece magicamente aos 18 anos. Jovens adultos enfrentam desafios enormes ao ingressar no mercado de trabalho ou na pós-graduação. A dificuldade de se manter focado em atividades de “início, meio e fim” torna-se uma barreira para a conclusão de graduações e para a estabilidade no emprego.
Estudantes de mestrado e doutorado, por exemplo, lutam para terminar a leitura de artigos ou a escrita de teses, pois não foram treinados para permanecer tanto tempo diante de um estímulo “enfadonho” como um texto acadêmico, que não possui as cores e a dinâmica de um jogo.
No ambiente de trabalho, o acesso liberado à internet e a ausência de bloqueios tecnológicos exigem um autocontrole que o indivíduo viciado já perdeu. Para profissionais de comunicação e marketing, que trabalham dentro das próprias redes sociais, o risco é ainda maior, pois a ferramenta de trabalho é a mesma que alimenta a distração.
A Raiz do Problema: O Papel da Família
Muitas vezes, a semente desse comportamento é plantada na infância. Tornou-se comum ver pais em restaurantes entregando tablets e celulares para crianças muito pequenas — às vezes com menos de dois anos — como forma de mantê-las quietas e evitar birras.
Esse ato ensina à criança, desde cedo, que aquela tela luminosa é a fonte de prazer e de fuga da realidade. É um treinamento que começa na primeira infância e culmina na perda de controle durante a adolescência e a vida adulta.
Além disso, o tratamento de adolescentes esbarra frequentemente na hipocrisia dos próprios pais. É difícil cobrar que o filho saia do videogame quando os pais não saem do WhatsApp ou do e-mail. O exemplo observado é muito mais poderoso do que o discurso verbal. Pais que não se dispõem a largar seus aparelhos durante as refeições ou momentos de convivência dificultam imensamente a recuperação dos filhos.
Caminhos para o Tratamento e Recuperação
O tratamento psicológico para a dependência tecnológica varia conforme a faixa etária, mas sempre envolve uma reestruturação de hábitos.
Tratamento para Adolescentes
No caso dos jovens, o trabalho é sistêmico e envolve a família. Os pais precisam ser orientados a mudar seus próprios comportamentos e a estabelecer rotinas de desconexão. A proposta inclui resgatar momentos de interação real, como refeições sem eletrônicos, onde se possa conversar, olhar no olho e saber da vida do outro. Sem a adesão dos pais a essas mudanças, o adolescente provavelmente retornará ao padrão anterior.
Tratamento para Adultos
Para os adultos, o primeiro passo é a conscientização. Muitas vezes, utiliza-se a estratégia de anotar o tempo gasto versus as tarefas realizadas para que a pessoa perceba a discrepância e o “funil” de tempo perdido em redes sociais e jogos.
O segundo passo é a criação de novas rotinas que sejam gratificantes fora da tela. Isso inclui:
1. Resgate de atividades físicas: Retomar exercícios abandonados.
2. Interação Social Presencial: Reencontrar amigos e familiares fora do ambiente virtual.
3. Bloqueadores Externos: Para casos onde o autocontrole falha, recomenda-se o uso de aplicativos que bloqueiam o acesso a mídias sociais e jogos em horários de trabalho. Em casos extremos, a senha desses bloqueadores deve ficar com uma pessoa de confiança, criando uma barreira real para o comportamento compulsivo.
Conclusão
O reconhecimento do vício em videogames como doença pela OMS não é apenas uma formalidade burocrática; é um alerta para uma sociedade cada vez mais imersa em telas. Seja um adolescente confundido com um paciente de TDAH ou um adulto incapaz de terminar um relatório de trabalho, o mecanismo é o mesmo: uma busca incessante por dopamina através de uma hiperestimulação artificial.
Podemos pensar no cérebro viciado em tecnologia como alguém que se acostumou a comer apenas fast-food extremamente temperado e açucarado. Quando essa pessoa se depara com um prato de vegetais saudáveis (a vida real, os estudos, uma conversa calma), ela não sente sabor algum, achando a experiência insuportável. O tratamento, portanto, não é apenas proibir o “fast-food”, mas reeducar o paladar mental para voltar a sentir prazer nas nuances sutis e nutritivas da vida real.